09 dezembro, 2006

Data da Apoteose

Esta data, 9 de Dezembro, marca o aniversário de uma peça. Façamos-lhe uma homenagem no Degredo, a convite meu. Uma regressão no tempo, mais precisamente, até há um ano atrás. Aproximemo-nos aos poucos das 9 e meia da noite.

“Que espectáculo – disse Ele – já viste?”

O pátio da Esta – lugar frequentadíssimo pelos jovens estudantes compreendidos nas idades da escola Secundária – tinha um ambiente estranhíssimo; e era, no entanto, mesmo aquele lugar que, durante as aulas, era habitualmente preenchido por centenas de estudantes aos intervalos, a correrem para as aulas, a namorarem, a rirem, a falar. A Esta, vista de cima, tem a forma de um seis – 6 – quadrado; é uma escola simples na sua imensidão de salas mas complexa nos seus eventos, assim como qualquer outra escola.

No meio deste seis encontra-se este pátio e dentro dele uns jardins simples e simétricos; a toda a volta destes as paredes forradas de janelas todas iguais, a darem vista para corredores em todas as direcções. Durante as aulas a Esta é um lugar funcional, habitual; não é difícil de se conhecerem os cantos à casa.

(alguns cantos é que não se conhecem.)

Naquela noite, porém, a situação era diferente. O pátio era iluminado por um holofote e algumas lâmpadas sobreviventes dispostas aqui e ali; os jardins tinham uma tonalidade assustadora e sombria e o chão, de alcatrão e pedra, sólido como nunca parecera antes. Naquele lugar circulavam alguns jovens atarantados; esses jovens são membros do Teatro e não estão nos seus dias. Treinavam à última da hora o texto; tentavam dominar os nervos que alguns dos rapazes convertiam em risos histéricos e algumas das raparigas convertiam em lágrimas.

Ele repetiu o que já tinha repetido.

“Isto é bestial! Esta imagem é mesmo brutal… ali aquela já esteve a chorar e tudo… já viste o que se está a passar aqui? É… paradoxal… espectacular.”

Entre as várias interpretações que se foram dando destes momentos não tão mágicos para alguns, o tempo passava. O tempo corria, implacável; já tinham lanchado; já tinham verificado mil vezes os adereços, já se tinham maquilhado e já tinham ido à casa de banho, já tinham enchido o ginásio de cadeiras da sala de convívio e já tinham circulado até à exaustão. O tempo continuava a passar e havia quem não aguentasse. Os segundos andavam, os minutos saltavam e as horas voavam.

Aquele dia tinha chegado.

“Realmente – respondeu Eu a Ele – espectáculo é a palavra adequada.”

Aquela noite foi uma noite de aventuras e descobertas. Os Desliza ficaram a última hora a consumir-se de nervos na sala dos professores de Educação Física. As raparigas eram consoladas, os rapazes trocavam as últimas conversas antes do que parecia ser o fim do mundo. No quadro dos professores de educação física, por baixo de algumas indicações alusivas ao corta-mato, só havia uma mensagem, carregada a giz branco, que fazia impacto.

Talvez muito menos impacto do que estas palavras fazem num livro, em frente ao leitor que, decerto, vai achar uma calamidade:

“Muita merda.”

Esta frase, no mundo do teatro, quer dizer “boa sorte”. Assim como “parte uma perna”; é daquelas coisas que quem agradece é um homem morto.

Só houve uma pessoa que agradeceu e que quase que não sobrevivia.

O primo de Eu, o Deus Degredo (DD).

O leitor habitue-se a este nome. O DD é daquelas pessoas cuja própria existência é posta em dúvida, tão bizarra que é. É um rapaz tão sociável, tão simpático, tão bem educado e tão amoroso, que a escola em peso o conhece. Muitas destas pessoas tomam-no como um cromo, como um motivo de riso. Ele não se ri dessa maneira de ninguém, embora encontre motivos de riso em muitos mais factos e leve uma vida mais pura, descontraída e saudável do que os outros que se julgam os ostentadores da bandeira dos “Exemplos”.

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DD vai ter uma importância a não menosprezar nesta história e em muitas outras, é bom que o leitor se habitue. Ah, e em letras um pouco menos carregadas, abaixo da supracitada escandalosa mensagem, estava uma outra:

“Montes de merda.”

E porque é que toda a gente se sentia assim? Sem contar com toda a responsabilidade que caía aos ombros dos Desliza, sem contar com toda a gente que andou a falar bem do trabalho dos Desliza e sem contar com as centenas de pessoas que estão ansiosas por ver o espectáculo… não há motivos para ficar nervoso.

Nem sombra deles. Que ideia!

É óbvio que nunca haveria um fim do mundo se este nunca chegasse. E o fim do mundo, de facto, chegou, quando as luzes do ginásio se fecharam e veio a formadora – mesmo em cima da hora, quando até o público já se tinha calado – a correr para abrir a porta do ginásio que dava para o corredor onde os actores se encontravam, já em estado de loucura. Algumas almas aventureiras chegaram agora mesmo da casa de banho e apanharam do chão o sistema nervoso que ficou pelo caminho. As personagens da primeira cena deslocaram-se para a frente e correram.

Ai o coração que não parava.

Ai o cérebro que não pensava.

Correram, rastejando, entre os projectores e tentando evitar os cabos, e entraram, assim, no palco. O público não estava só nas bancadas; para pânico dos actores que se sentiam cada vez mais pequeninos, estava em todo o lado. Estava a toda a volta do suposto, planeado e delimitado palco; os corações dos actores dispararam e, automaticamente, perderam a virgindade em palco.

Nessa peça – que era baseada em três tragédias gregas – fez-se o possível e o impossível. Houve problemas de propagação de voz, houve dificuldades e também quem se magoasse; mas tão rápido como tinha começado acabou. As montagens de cenas, os grupos de apoio, as personagens, as mortes, as ameaças e as concretizações, passou-se tudo de um momento para o outro. Houve quem se esquecesse de tudo o que se passou lá; a ninguém ocorreram brancas.

Houve aplausos. Houve agradecimentos. Foram estrondosos; podiam ter ficado por perceber algumas falas de pessoas mais nervosas ou menos bem colocadas, mas a energia e a união do grupo transpareceu. Estavam todos lá naquela noite tão apoteótica.

Apoteose – colocação de uma pessoa na categoria dos deuses; homenagem grandiosa; cena final de certos espectáculos.

Pode não ter sido para o mundo, mas foi-o para os Desliza. Pelo menos assim está escrito, pelo menos assim ficou registado. Eu,

CAPITÃO DEGREDO